quarta-feira, 9 de julho de 2008

Conversa de Casal

A acção passa-se na sala de jantar. Um casal está sentado à mesa. Idade indefinida, talvez nos seus trinta e tal anos. Não existe nada de extraordinário no seu aspecto físico. Não são nem gordos nem magros, vestem-se de maneira formal, mas não excessivamente. Decoração banal, tal como o dia, que não é diferente dos habituais.
A mulher está a comer; o homem monta um puzzle.


Ela- sempre que como favas lembro-me do meu tio
Ele- não gosto do mês de Dezembro
Ela- ele dizia que era a única comida que não podia suportar
Ele- saio à rua e vejo todas as decorações
Ela- o meu tio contava-me que, quando era novo, não gostava de quase comida nenhuma
Ele- os pais natais, as árvores e os presépios
Ela- tinham de o agarrar e enfiar-lhe a colher, à força, pela boca abaixo
Ele- a música, um pouco por todo o lado, jingle bells
Ela- só gostava de linguado e bife de lombo
Ele- irrito-me
Ela- não comia mais nada, nenhum tipo de peixe, carne, vegetais...
Ele- não sei porquê
Ela- viviam numa quinta
Ele- talvez porque me tenham tentado molestar uma vez, em dezembro
Ela- faziam criação de gado, vacas, porcos, galinhas. Até cavalos lá havia
Ele- andava na escola, tinha para aí uns nove anos
Ela- um dia, o meu tio foi passear para o meio do mato, para longe da quinta
Ele- sim, tinha à volta disso
Ela- meteu-se no meio da densa vegetação, num terreno desabitado, que pertencera aos antigos vizinhos
Ele- apanhava o autocarro todos os dias
Ela- ninguém sabe muito bem como é que fez aquilo
Ele- e todos os dias havia um velho que olhava para mim
Ela- a verdade é que caiu num buraco
Ele- o velho entrava na mesma paragem e saía sempre quando eu saía
Ela- um buraco bem fundo, de onde não conseguia sair
Ele- o autocarro estava sempre cheio e eu reparava que ele se encostava a mim
Ela- ele bem gritou, mas ninguém o ouvia
Ele- íamos sempre os dois de pé, não encontrávamos lugares sentados
Ela- passado umas horas, a família reparou que ele tinha desaparecido. Procuraram-no
Ele- uma vez, saí do autocarro e estava com vontade de ir à casa de banho
Ela- mas não o encontravam
Ele- fui a uma casa de banho pública
Ela-chamaram-no
Ele- não tinha altura para chegar ao urinol
Ela- e continuaram a chamar
Ele- e meti-me num compartimento
Ela- mas nada
Ele- não fechei o compartimento à chave
Ela- o meu tio, quando chegou a noite, já desesperava
Ele- logo de seguida, o velho entrou dentro do compartimento e fechou-o à chave
Ela- mas chegou o dia seguinte e continuaram sem ter notícias dele
Ele- depois, começou-me a mostrar revistas pornográficas
Ela- a fome apertava. O meu tio já rezava, pedia a Deus um bocado de pão, queijo, carne de porco, o que quer que houvesse. Mas nada
Ele- perguntou-me se eu estava com tesão. Não sabia o que isso era
Ela- ao fim de dois dias, lá o encontraram. Tremia de frio, medo, sede e fome
Ele- A seguir, tentou baixar-me as calças
Ela- a partir daí, o meu tio passou a comer de tudo
Ele- eu resisti, perguntei-lhe o que é que ele estava a tentar fazer
Ela- até carne de cão, macaco e iguanas
Ele- destranquei a porta e ele deixou-me sair
Ela- mas nunca comeu favas
Ele- não me lembro da cara dele
Ela- por mais que insistíssemos, nunca provou uma fava sequer
Ele- mas acho que tinha barbas
Ela- enojavam-no, estarreciam-no
Ele- talvez fossem brancas, como as do pai natal
Ela- nunca soubémos porquê
Ele- seja como for, de vez em quando lembro-me disso
Ela- até comia raízes, todo o tipo de flores campestres, cágados e sapos
Ele- não é que tenha ficado algum trauma
Ela- mas nunca comeu favas
Ele- até porque ele não me fez nada
Ela- sempre que como favas lembro-me do meu tio.
Ele- não gosto do mês de Dezembro


(ele começa a cantar uma ópera romântica, enquanto ela palita os dentes. Passado pouco tempo, levantam-se e trocam um beijo apaixonado. Vão juntos para o quarto).